TRAGÉDIA CUBISTA A tela genial retrata pessoas em fuga. Picasso dizia que não imaginava uma cidade sendo bombardeada
Uma das histórias mais conhecidas sobre a tela "Guernica", pintada pelo artista espanhol Pablo Picasso em 1937 em repúdio ao bombardeio nazista à cidade
basca de mesmo nome, diz respeito a um diálogo travado entre o pintor, em seu ateliê parisiense, e um oficial alemão.
Era o ano de 1940 e a capital francesa encontrava-se ocupada pelas tropas do ditador Adolf Hitler. Ao ver uma reprodução da tela, o oficial perguntou a
Picasso: "Foi o senhor quem fez isso?" A resposta veio crua, como a matança retratada no quadro: "Não, foi o senhor". É comum acrescentar-se a essa passagem
detalhes inexistentes: o mais frequente imagina o oficial impactado diante da tela real, que mede 3,5m x 7,7m. Trata-se de algo impossível, já que naquele
ano "Guernica" se encontrava viajando pelos EUA - ela ficaria exposta no Museu de Arte Moderna de Nova York até 1981. Sem falar que, se estivesse ao alcance
dos nazistas, teria sido obviamente confiscada.
Como exemplo de "arte degenerada", a patética cena de três mulheres fugindo desesperadas sob o olhar atônito de um cavalo agonizante talvez tivesse até
se tornado cinzas. No livro "Guernica" (José Olympio), o historiador de arte holandês Gijs van Hensbergen deixa isso bem claro e ainda dá mais informações
sobre as visitas que o maior gênio artístico do século XX recebia periodicamente de agentes da Gestapo, representantes de tudo que Picasso mais abominava.
Numa entrevista de março de 1945, ele confirmou o episódio: "Às vezes, os alemães vinham me visitar, fingindo admirar meus quadros. Dava-lhes cartões-postais
da tela dizendo 'levem de lembrança'."
Era óbvio que não foi pela pintura vanguardista que o ateliê de Picasso (1881-1973) havia se tornado um ponto turístico: a intenção dos oficiais alemães
era descobrir ligações do artista com a Resistência Francesa. Tal pano de fundo torna incontornável a leitura desse livro híbrido, que retrata a vida do
pintor, os momentos marcantes da história, da Guerra Civil Espanhola à redemocratização do país, e, por que não, a narrativa épica da incrível trajetória
de uma tela. Sabe-se que Picasso não pintou "Guernica" (atualmente exposta no Museu Reina Sofia, em Madri) por iniciativa própria: ele havia sido convidado
a produzir um trabalho para a Exposição Internacional de Paris pela organização do pavilhão espanhol e, a três meses da abertura, ainda não tinha um tema.
Quem lhe sugeriu o bombardeio como assunto foi um dos organizadores do pavilhão. Picasso argumentou que não sabia como ficava uma cidade destruída. "É
como um touro desembestado numa loja de porcelanas chinesas", disse-lhe o amigo.
Nos meses seguintes ao ataque nazista, marcados pela ascensão do ditador espanhol Francisco Franco, a obra começou a viajar pelo mundo para arrecadar fundos
destinados aos refugiados republicanos. Já pensando na possibilidade de "Guernica" tornar-se uma arma política, Picasso a fez numa lona fácil de ser retirada
da armação e enrolada. Em 1938, quando ela esteve exposta na Inglaterra, os homens entravam na sala da galeria e saíam descalços. O preço do ingresso eram
botas usadas, destinadas ao front. Mas, somente quando o painel foi levado para os EUA, um ano depois, é que sua fama ganhou o mundo - e não apenas porque
gerou um debate sobre a neutralidade do governo americano diante do avanço nazista. A chegada da tela coincidiu com o ambiente receptivo ao modernismo
e a transferência dos debates artísticos e do mercado internacional da arte da Europa para os EUA.
A permanência da obra em Nova York não foi sempre pacífica. Durante o macartismo, nos anos 1950, o FBI elaborou um relatório sobre Picasso ("Questão de
Segurança C, Arquivo 100-337 396"), em que o identificava como espião soviético. Chegava ao exagero de dizer que o pássaro que serviu de modelo para a
pomba da tela era um "jacamim russo". Após o Massacre de MyLai, no Vietnã, em 1968, "Guernica" foi vítima de um ataque vândalo, exigindo que Picasso a
retirasse do MoMa. O pintor argumentou que, como hóspede de honra do museu, a obra fazia "um discurso político todos os dias no centro de Nova York".
Ao projetar o Museu Guggenheim de Bilbao, no País Basco, o arquiteto Frank Gehry reservou um espaço para o painel. Mas os herdeiros de Picasso e o governo
espanhol não foram favoráveis à transferência da tela para a cidade, que fica a meia hora de Guernica. Ao que os bascos responderam, provocativos: "Nós
ficamos com as bombas e Madri, com a arte."
Como foi o ataque aéreo
Era uma segunda-feira ensolarada na cidade de Guernica, um povoado histórico do País Basco, região autônoma ao nordeste da Espanha. Os habitantes, a maioria
camponeses, levavam sua vida habitual, mesmo para uma época de guerra. A única coisa fora do normal foi a passagem de um avião de reconhecimento, voando
em círculos - isso às 11 horas. E só. Mas, por volta das 16 horas, o céu escureceu. Voando em forma de "x", 23 aeronaves marcadas com uma cruz negra avançaram
sobre a cidade. Era a Legião Condor da famigerada Luftwaffe, a força aérea nazista. Durante três horas, a esquadra despejou 250 quilos de bombas de fragmentação
e incendiárias, transformando o lugarejo numa bola de fogo. 1.645 pessoas morreram e 889 ficaram feridas. Às 19h45, quando a formação desapareceu no horizonte,
a cidade tinha virado cinzas.
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