terça-feira, 19 de abril de 2011

As pinturas cegas de Tomie

ouve uma época em que Tomie Ohtake resolveu vendar seus olhos para
criar obras que ela mesma chama de "pinturas cegas". Era o fim dos
anos 1950, começo dos 60, quando a artista se lançou a essa
experimentação, num "momento capital de Tomie na vanguarda", como diz
o curador Paulo Herkenhoff - é que a artista pintava "sem olhar para o
real" e inominando suas imagens. Por muito tempo, os quadros dessa
fase ficaram como que guardados, vez ou outra figurando em exposições,
mas, isolados. Somente agora, aos 97 anos, Tomie apresenta pela
primeira vez um conjunto reunido de cerca de 32 de suas obras dessa
série, em exposição a ser inaugurada hoje para convidados e amanhã
para o público em uma das salas do instituto que leva seu nome.


Instituto Tomie Ohtake/DivulgaçãoRadical. Óleo sobre tela de 1962, sem
título: artista trabalhava de olhos vendados na época
"O objetivo primordial do esforço crítico e historiográfico é tornar
visível esse corpus de "pinturas cegas" para sua mais efetiva
inscrição na história da arte", afirma Herkenhoff, curador da mostra.
Ele, que vem conversando com Tomie há anos para realizar essa
exposição, considera que exista algo até de radical na atitude da
artista no contexto em que criou essas obras. "Ela rompe com a
dualidade entre o abstracionismo geométrico e o informal", diz ainda
Herkenhoff.

Mais ainda, a experiência das "pinturas cegas" indicam o interesse de
Tomie pelo zen-budismo e pelas questões da fenomenologia de
Merleau-Ponty - ou seja, a experiência da percepção do mundo através
da passagem para os sentidos, como a busca da plena experiência.

Foi o crítico Mário Pedrosa, grande admirador e incentivador da
artista, que na época sugeriu a ela que lesse Merleau-Ponty e também,
como já afirmou Tomie ao Estado, que pintasse com os olhos fechados. A
artista, nascida em Kyoto, voltou-se à pintura apenas aos 39 anos, já
vivendo no Brasil. Criou, primeiramente, obras figurativas. Mas seu
caminho para o que ela chama de "simplicação", ou sintetização, que a
levou ao abstracionismo de formas e gestos puros - linhas, círculos,
por exemplo -, unida ao desempenho da cor em sua obra, também
incorporou a experiência das "pinturas cegas": a partir do não-ver, ir
atrás do "sentido do olhar". "Fiz uma dessas pinturas e quando abri os
olhos, uma imagem apareceu e não era uma forma certa", já contou a
artista.

Oceano. Certa vez, Tomie chorou ao ver uma de suas obras da série
"pinturas cegas", de predomínio do branco, em uma das salas da 24.ª
Bienal de São Paulo, em 1998. Na ocasião da mostra, com curadoria do
próprio Herkenhoff - e considerada uma das melhores edições da
história das Bienais -, a tela de Tomie estava ao lado de obras
brancas de criadores como o russo Kasimir Malevich, de Lucio Fontana,
Yves Klein, Soto, Robert Rauschenberg e Robert Ryman. Esse segmento,
afirma o curador, "correspondia a um mundo sem centro, constituído
depois da Segunda Guerra e formado por herdeiros do branco sobre o
branco da pintura suprematista".

Agora, Herkenhoff resgata uma teoria, a do ponto cego (punctum cecum),
"região no campo visual do disco ótico no qual a visão entra em
colapso", para analisar as obras de Tomie, que, na mostra, são as
realizadas entre 1959 e 1962. "Esses trabalhos colocam a relação entre
artes visuais e cegueira", diz o curador. Acompanhando as "pinturas
cegas" da exposição, Herkenhoff colocou um mapa do ponto cego para os
visitantes entenderem a analogia.

A montagem da mostra prima por um caráter de interioridade, colocando
as telas em ambiente escuro. São obras de formas livres, como um
"oceano", em predomínio de brancos, pretos e cinzas - mas há também o
marrom, que remete à cor das primeiras abstrações de Tomie; o
vermelho, azul, verde. Por vezes, é como se víssemos um certo grafismo
nos trabalhos o que, inevitavelmente, é a referência à formação do
desenho (e do ideograma) no Japão de Tomie.

Camila Molina - O Estado de S.Paulo
12 de abril de 2011

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