quinta-feira, 29 de janeiro de 2009


Edições do corpo: auto-retrato
A produção de conceitos de alguém sobre si próprio pode parecer hoje um algo que sempre esteve presente, mas foi a partir do século XIX que começamos a nos reconhecer como indivíduos, como seres únicos. A invenção da intimidade foi um sucesso e com ela vieram os diários, o cultivo das pequenas coisas privadas e a reunião de símbolos que nos representassem. A fotografia, que dava seus primeiros passos, foi fundamental para que pudéssemos nos reconhecer fora de nós mesmos e, principalmente, descobríssemos que era possível forjar identidades – verdadeiras ou não – para o público.
É provável que vivamos nos nossos dias uma revolução muito parecida. Quando as ditaduras se alastraram pelo globo, fossem comunistas, nazistas ou capitalistas, a massificação dos comportamentos, das roupas e até dos edifícios foi muito bem implantada tanto em prol dos benefícios da coletividade como dos benefícios do consumo. Hoje são poucas as pessoas que acham a coletividade o que há de mais atraente, o indivíduo voltou a ser seu próprio culto e, mais uma vez, a fotografia desempenha um papel definitivo.
A democratização das câmeras digitais é um dos maiores fenômenos da pós-modernidade. Tudo é fotografável já que não temos o inconveniente do preço dos filmes e das revelações, limitantes da quantidade de imagens que podíamos fazer. Hoje não temos mais esses detalhes com que nos preocuparmos, então tiramos retratos das nossas festas, das festas dos outros, da festa de desconhecidos, dos nascimentos, das aulas, da ida à padaria, das abelhas, da mesa do escritório...de tudo. Mas, principalmente, descobrimos o prazer de tirarmos fotos de nós mesmos acreditando na importância ímpar dos nossos cotidianos, das nossas intimidades, das pessoas, coisas ou animais que nos são queridos.
Os auto-retratos ou self-portraits tem uma função muito parecida com a que tinham as fotografias de estúdio há quase dois séculos atrás: editar o próprio corpo transformando-o em símbolo da classe social a que a pessoa pertenceria. Hoje, quando dispensamos fotógrafos em favor do timer das câmeras, podemos simbolizar só a nós mesmos. Isso pode dar a impressão de que vivemos um momento de esquizofrenia mas, percebendo a complexidade do processo, vê-se que não é assim; ao mesmo tempo em que queremos ser autênticos, queremos ter um referencial de grupo a que nos apegar, a onde pertencer – vejam que um auto-retrato nunca é tirado e guardado, queremos sempre publicá-los aqui ou ali, no Orkut, no My Space, no messenger... A internet é a convulsão desse fenômeno.

E é justamente em passeios pelos diversos sites de relacionamento da internet que podemos mergulhar nesse rico universo de auto-manipulações do corpo. Do que falam esses corpos? São livres ou controlados? Comunicativos ou silenciosos? O que significam e porque o uso de certos objetos, poses e roupas? Com perguntas desse tipo em mente, podemos descobrir muito sobre a nossa sociedade dita global e, por isso, muito sobre nós mesmos; seres inventados, nem dentro nem fora: seres, como pensou Foucault, na fronteira.

Auto-retrato: s. m., retrato feito pelo próprio.
Auto-retrato lírico de memórias imagéticas, em recortes de tempos incalculáveis, em pausas, em lembranças, mentiras e verdades interiores...
Resíduos, memória, história, realidade, ficção. Tentativa de cartografar o eu.
Fragmentos procurando e compondo uma identidade. Amálgama de sentimentos interiores subjetivos.


"O pintor olha a sua face, interroga-se e não sabe quem é", Iberê Camargo.

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